Helena Roseta
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A "estória" do espólio de Natália Correia
Intervenção em homenagem a Natália Correia promovida pela AR
20-04-2023
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No ano em que passam 30 anos sobre a morte de Natália Correia e 100 sobre o seu nascimento, Helena Roseta relata a "estória" do espólio de Natália, de que foi fiel depositária e testamenteira durante um ano após a morte do viúvo, Dórdio Guimarães, em 1997. A intervenção teve lugar na Biblioteca da Assembleia da República, por ocasião do apresentação do livro "O Dever de Deslumbrar", uma biografia recém editada de Natália, da autoria de Filipa Martins.

A "estória" do espólio de Natália Correia

Coube-me, após a morte de Dórdio Guimarães em 1997, assumir a responsabilidade de testamenteira, à frente de uma lista de personalidades amigas do viúvo em que se destacavam António e Manuela Ramalho Eanes. O que vos quero contar hoje é a história da entrega ao Estado do espólio da Natália, do Dórdio e de Manuel Guimarães, pai do Dórdio. Socorro-me das minhas notas de 2003 para a audiência no processo judicial a que fui submetida, quando, dez anos após a morte da escritora e cinco após a entrega dos bens, pedi ao Estado que me fossem ressarcidas as despesas que paguei. O trabalho do espólio durou quase um ano, sem honorários para mim, mas com o apoio de uma equipa extraordinária e muitos amigos. As despesas que suportei, com a ajuda de amigos, foram de 25 mil euros. Mas com elas, com uma subvenção de 15 mil euros do Governo Regional dos Açores e um subsídio simbólico de mil euros da Sociedade Portuguesa de Autores, conseguiu-se salvaguardar, inventariar e entregar ao Estado um espólio de 14 mil livros, 800 obras de arte, 200 caixas arquivadoras repletas de manuscritos, muitos quais inéditos, além de fotografias, filmes, vídeos, mobiliário e contas bancárias, tudo no valor de perto de um milhão de euros.

Um espólio ensarilhado
Quando o Dórdio morreu, o estado do espólio da Natália era o seguinte: doado pelo Dórdio à Fundação Cultural Natália Correia; parcialmente penhorado pelo Tribunal de Leiria por dívidas contraídas pela fundação e nunca pagas; e destinado por testamento a ser entregue ao Governo Regional dos Açores, à Biblioteca Nacional e à Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, ficando a Sociedade Portuguesa de Autores com os direitos de autor.

Era impossível cumprir os legados do testamento nestas condições. A primeira coisa a fazer era desensarilhar tudo isto. Recorri ao então Procurador-Geral da República, Dr. Cunha Rodrigues. A seu conselho e meu pedido, a fim de proteger o espólio, foi interposta pelo Ministério Público uma providência cautelar de arrolamento de todos os bens que estavam em casa da Natália e no armazém de um tal Joaquim Lopes, talhante em Leiria, bem como das contas bancárias. A petição de herança jacente, entrada em dezembro de 1997, foi decidida meses depois. Em abril de 1998 o Estado foi declarado herdeiro dos bens, tendo a Direção Geral do Património, entidade competente para o representar, autorizado a entrega provisória dos legados aos seus destinatários.


Entre a morte de Dórdio em junho de 97 e novembro desse ano, data em que entrámos na casa da Natália, decorreram vários meses sem que ninguém pagasse as contas da casa. Havia rendas, consumos e faturas em atraso. Negociámos com o senhorio deixar-nos permanecer na casa até inventariar e entregar os bens. Os consumos de luz e água tinham de ser pagos para restabelecer a ligação, os de telefone, elevados, não foram pagos por se desconhecer quem os teria provocado. O trabalho de inventariação e arrolamento decorreu assim em casa da Natália, entre Novembro de 97 e Julho de 98.

A equipa de trabalho
A escolha dos peritos, ouvidos os legatários, foi baseada nas qualificações próprias e na relação de confiança que eu podia ter neles. Há muita intimidade num espólio deste tipo e era, a meu ver, perigoso não acautelar a questão ética da confiança pessoal, quer em termos de sigilo, se se encontrassem situações de melindre, quer em termos de seriedade no tratamento do material. Um dos peritos foi indicado pela Biblioteca Nacional, que além disso destacou para casa da Natália a Dr.ª Fátima Lopes, que ao longo de meses, sentada numa mesinha no quarto da Natália, a abarrotar de papelada, superintendeu na organização preliminar e metódica de todos os manuscritos. Tarefa imensa, sabendo-se que a escritora escrevia compulsivamente em qualquer pedaço de papel que estivesse à mão. E havia papéis com a letra da Natália por todo o lado. Quando os homens das mudanças estavam a desmontar uma das estantes, apareceu caído no chão um papel rabiscado. Era um poema inédito a Cicciolina. Sentimos ecoar uma gargalhada da Natália!

O perito avaliador dos livros pretendia dividi-los em lotes, individualizando apenas os livros raros e antigos, sem preocupação de avaliar os outros. Os livros mais valiosos, quase todos do núcleo que pertenceu a Cardoso Marta, atingiram valores que chegaram a 5 mil euros. Mas este era um espólio com valor cultural para lá do valor material. Um livro com anotações manuscritas pela Natália, por exemplo, pode ter um valor excecional. A nossa equipa inventariou por isso todos os livros e registou as anotações manuscritas em fichas individuais.

O trabalho de inventariação foi registado numa base de dados informática, concebida para o efeito, que permitia a obtenção rápida de listagens por tipo de bem, valor e legatário. Todos os objetos inventariados foram além disso referenciados à divisão, móvel ou parede na qual se encontravam, para permitir uma eventual reconstituição da casa ou parte dela, se o Governo dos Açores o quisesse vir a fazer. Com o mesmo objetivo a casa foi filmada e fotografada tal como a encontrámos, antes de qualquer outro trabalho.

Apesar de não ter sido deferido o meu requerimento no sentido de os autos de arrolamento serem realizados a partir do suporte informático, a informação fornecida pela base de dados acabou por se revelar de grande utilidade, ao ser aceite pelo tribunal a anexação aos autos, penosamente manuscritos pela funcionária judicial, listagens informáticas dos bens arrolados, conferindo rigor acrescido ao resultado final do arrolamento.

O trabalho de inventariação e avaliação da fototeca, videoteca e filmoteca foi feito por José Luís Madeira, fotógrafo e grande amigo de Natália. Só fotografias inventariou mais de 7 mil, encontradas a monte em várias gavetas. Foi um paciente trabalho de detetive identificar a maioria dos fotografados. As coleções de arte, num total superior a 800 peças, foram avaliadas pelo sr. Manuel de Brito, da Galeria 111, a título gracioso, mas antes tinham sido limpas, organizadas, registadas em ficha e fotografadas pelo José Luís. As roupas e objetos pessoais, como as famosas boquilhas, foram selecionadas e avaliadas pela Dr.ª Madalena Brás Teixeira, na altura diretora do Museu do Traje.

O quadro desaparecido
Antes da entrega do espólio aos vários legatários, a que se acrescentou a Cinemateca Nacional com o espólio do cineasta Manuel de Guimarães que também se encontrou em casa da Natália, foram realizadas três grandes exposições, uma na Biblioteca Nacional, com base no acervo literário da poeta, na altura o maior acervo de escritor português jamais recebido naquela instituição; outra no Palácio Galveias, em Lisboa, com as coleções de arte; e uma terceira no Museu do Traje, com a roupa e objetos pessoais da escritora.

Na exposição das Galveias faltava o célebre autoretato da Natália, que durante anos encimou a chaminé da sala. O quadro tinha desaparecido durante o último paradeiro da exposição itinerante da Fundação Natália Correia, mas no catálogo foi colocada uma reprodução fotográfica, com indicação de “quadro desaparecido”. Uma queixa minha à Judiciária permitiu tempos depois localizar o quadro em casa do tal talhante de Leiria e o quadro acabou recuperado e devolvido à herança. Mais uma peripécia inesperada, mas frequente quando se entra no universo da Natália.

A prestação de contas em tribunal
Na prestação de contas submetida a tribunal, entendeu o Ministério Público contestar o nosso trabalho, argumentando que “estava muito bem feito, mas não era preciso tanto”. Recusou, ainda, aceitar algumas despesas ridículas, como um fole, incluído num conjunto para a lareira, ou algumas refeições que ofereci à equipa. Defendi em tribunal que me era irrelevante o reconhecimento dessas pequenas despesas. Paguei-as do meu bolso e fiz muito bem, porque era preciso manter um espírito de missão na equipa. O trabalho era difícil, moroso e pago a valores baixos, ou até a título gracioso. Quem já trabalhou em equipa sabe a importância de criar este espírito de cooperação e mobilização. Pela Natália, como então disse em tribunal, teria pago muito mais.

Missão cumprida
Se eu não tivesse arriscado assumir os encargos, as tarefas e a responsabilidade de todo este trabalho, onde estaria agora o espólio da Natália? Em hasta pública, penhorado, desmembrado, perdido para sempre. Fiz, em consciência, o que me competia. Outros fizeram e farão, a partir do meu trabalho, o que a Natália merece, como se vê pelo livro da Filipa Martins. Para mim, foi um ano entusiasmante, sem honorários mas muito gozo, a que se seguiram dez longos anos até ser ressarcida das despesas que assumi e que foram aprovadas. Sinto hoje, como então, que fiz o que tinha a fazer: cumprir um dever cívico, cultural e de amizade. Mas sobretudo sei agora que abri caminho para que muitos mais possam aceder ao legado da Natália, servido com abundância à nossa míngua. Como ela mesma de si dizia, convidando-nos ao banquete:
"De em muito amor arder foi minha arte:
em meus versos tomai a vossa parte."